Em Cachoeira, na BA, quilombolas exaltam passado de lutas em região que foi berço do 2 de Julho

Foto: Eric Luis Carvalho/g1
Quando o recôncavo da Bahia, de forma pioneira, iniciou oficialmente as lutas por independência do Brasil em junho de 1822 em um levante popular contra o domínio português, uma outra luta por liberdade já era trilhada há anos naquela região.
A luta de homens e mulheres escravizados e determinantes para o sucesso de uma região que teve as zonas açucareira e fumageira como pilares econômicos do país foi, ao longo dos anos, relegada a segundo plano. Mas ela sempre existiu e segue existindo nas remanescentes comunidades quilombolas que compõem a bacia do Iguape, na região de Cachoeira.
“Hoje nós estamos até no IBGE, mas há anos atrás éramos pessoas que não existiam para muita gente. Era como se o quilombola não se alimentasse, não vestisse, não tivesse contato com a sociedade. Hoje é possível mostrar que a nossa cultura existe, que nossa identidade existe e que seguimos lutando para continuar existindo”, diz Juvanice Jovelino, da comunidade quilombola Kaonge.
“É uma luta do resistir para continuar existindo”, conta.
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Kaonge é uma das comunidades quilombolas de Cachoeira — Foto: Eric Luis Carvalho/g1
O Kaonge é uma das 14 comunidades que formam o Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape em Cachoeira.Cerca de 14 mil pessoas integram essas comunidades nos distritos de Santiago do Iguape e São Francisco do Paraguaçu.
Em comum, o fato de que todos esses quilombos surgiram nas regiões que margeavam os centros açucareiro e fumageiro.
“Meu bisavô trabalhou no Engenho do Kalembá, mas ele fugiu dentro dessas matas e construiu uma choupana de palha e sapé. Ele se escondeu, fez esse esconderijo dele e aí encontrou minha bisavó que era índia e vivia nessas redondezas do Vale do Iguape, que tinha uma grande comunidade indígena”, conta Juvanice.
Ancestralidade e educação
Juvanice Jovelino educa seus alunos através da música
Aos 67 anos, Juvanice Jovelino é exemplo da importância de dois pilares da existência das comunidades quilombolas: a reverência aos ancestrais e o papel da educação.
Líder espiritual da comunidade, ela é yaloxirá do terreiro da comunidade, que cultua os orixás Xangô e Iemanjá. Ela ainda ostenta o título “griot” do Kaonge, em uma referência ao mais velho responsável por transmitir os saberes do lugar.
Sua relação com o ensino começou de forma conturbada. Quando jovem, Juvanice precisou deixar o Kaonge a mando do pai, que decidiu investir na educação da filha e a enviou para Salvador. Juvanice morou no bairro de São Caetano, na periferia de Salvador, onde estudava.
A notícia do adoecimento da mãe, em 1972, fez a jovem Juvenice, então com 19 anos, largou a vida na capital para retornar à sua comunidade.
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Aos 67 anos, Juvanice Jovelino é exemplo da importância — Foto: Eric Luis Carvalho/g1
“Voltei. Minha mãe ainda viveu mais 4 anos. Aprendi tudo o que não tinha aprendido aqui antes de ir embora. Aprendi a mariscar, a pescar, tudo. Minha mãe tinha 10 filhos, dois em Salvador, então também passei a cuidar dos meus irmãos”, relembra.
Em casa, Juvanice decidiu que era hora de fazer da educação uma aliada no quilombo. Mesmo com poucos recursos, ela montou uma escola na comunidade. Nascia a “São Cosme e São Damião”.
“Eu não tinha quadro negro, eu não tinha nada. Eu botei uma tábua na parede e o giz era o carvão que eu usava para escrever. Eu apagava com pano molhado”, contou ao g1.
As duas horas de aula aos poucos foram se tornando mais e mais. Dos traumas com certas lições, Juvanice tirou aprendizado e não os devolveu para sala de aula. As tarefas onde encontrou mais dificuldades se tornaram músicas para ensinar aos seus alunos. [VEJA VÍDEO ACIMA]
Em pouco tempo, a escola chamou atenção da prefeitura, que contratou a professora como funcionário do município. Ainda nos final dos anos de 1970, quase 70 crianças das comunidades quilombolas passaram a frequentar a escola que nasceu com duas meses e quatro bancos de tira.
Nessa época, o local ainda não tinha energia elétrica, que só chegaria em 2007, nem água encanada, que só chegaria em 2013, junto como outros benefícios, como a construção de residências, através do programa Minha Casa, Minha Vida.
Hoje, a história do Kaonge já ganhou o mundo e segue com a mesma escola, hoje reformada, com salas para diferentes turmas, quadros para piloto e tudo mais que um escola merece. Por isso mesmo, já ganhou o mundo.
“A história da minha escola está por Brasília, Estados Unidos, Marrocos, por tudo que é canto”, se orgulha Juvanice.
História em livro aberto
Atualmente, o Kaonge integra o Núcleo de Turismo Étnico Rota da Liberdade, que faz parte do Núcleo de Turismo Étnico Comunitário da Zona Turística Baía do Iguape. Graças ao projeto, é possível, no quilombo, interagir com a cultura local, conhecer a culinária, opções de lazer, sobrevivência e espiritualidade. Além disso há eventos como a Festa da Ostra, que acontece durante um final de semana no mês de outubro.
“Os potenciais que tínhamos na comunidade. Fizeram levantamento de tudo mesmo que tinha na comunidade, as manifestações culturais, a sustentabilidade, as comidas, tudo isso integra o “Rotas (da Liberdade)”, conta Jucilene Jovelino, filha de Juvanice e atual diretora da escola do quilombo, que tem atualmente 40 alunos.
Entre as matérias tradicionais, há ensinamentos específicos sobre a cultura africana, sobre as mulheres e homens negros que construíram aquele local em uma saga de lutas e resistência, mantendo vivo o legado de um povo.
Juce é atual diretora da escola São Cosme e São Damião — Foto: Eric Luis Carvalho/g1
Apesar do projeto uma queixa da comunidade é em relação à estrada que leva ao quilombo, a partir da BA-880. A situação da estrada, que só foi asfaltada há cerca de dez anos, é precária. No dia em que a reportagem visitou o local, no final do mês de junho, havia máquinas para reparos na pista.
Já a via que leva desta rodovia até o quilombo ainda é de barro, o que dificulta o acesso de grandes veículos. Em excursões, os membros da comunidade costumam caminhar até o Quilombo do Dendê, comunidade vizinha, para realizar lá algumas atividades.
Via que liga rodovia ao quilombo sofre com buracos; reportagem encontrou máquinas tralhando no recapeamento — Foto: Eric Luis Carvalho/g1
Rota da Liberdade: Para chegar ao Kaonge saindo de Salvador é preciso pegar a BR-324, sentido Feira de Santana (Oeste), retornar à direita no km-566 e seguir pela BA-026 até Santo Amaro da Purificação. Após passar pelo posto policial, é precisa pegar a estrada que fica à 1 km na esquerda da BA-880 até a comunidade de Kaonge.
Agendamentos para a “Rota da Liberdade” podem ser feito através das redes sociais (Facebook e Instagram @turismo_rotadaliberdade), pelo telefone: (71) 9 9607-1452 ou e-mail [email protected].
fonte: G1